A política dos Estados Unidos sofreu um profundo abalo. As consequências do malfadado acordo da dívida norte-americana ainda estão por vir, mas o fantasma da grande crise de 2008 e 2009 voltou a assombrar. Há sinais tétricos que, para alguns analistas, são o prenúncio de uma grande tempestade global. O pior acordo do mundo é também o pior acordo para o mundo. Recessão, inflação, desemprego, quebradeiras. Mas é na política onde moram as maiores ameaças de choro e ranger de dentes.
Em 2008, havia retornado uma sensação que não era sentida desde 1929: a de que a economia americana não é nada previsível nem plenamente confiável. O rebaixamento feito por uma conhecida agência de risco é um efeito retardado. As agências começam a soar o alarme três anos depois do cadeado ter sido arrombado.
A crise que se abre a partir de agora derrama um outro ingrediente: os EUA não inspiram confiança em sua tão propalada estabilidade política. Enquanto se olha para as bolsas de valores e para as notas das agências, o elefante do movimento ultraconservador “Tea Party” voa sobre a cabeça de todos sem que muitos tenham ainda dado conta de seu peso.
O processo político adquiriu uma nova dimensão a partir do desenlace da negociação patrocinada por um presidente que se deixou fazer refém de uma minoria e não sabe como enfrentar suas ameaças. Guardadas as devidas proporções, Obama assinou seu Tratado de Versalhes. Assim como os comandantes alemães tentaram vender a ideia de que a humilhação de Versalhes era uma vitória de todos os que queriam o fim da I Guerra, custasse o que custou, Obama posa como satisfeito com o acordo que espantou o risco de “default”. Todavia, da forma como se livrou do calote, o presidente conjurou outros pesadelos.
O plano de contingência de Obama tinha algumas alternativas tradicionais, como a de simplesmente emitir mais dinheiro para pagar a dívida, uma solução precária, pois traria um elevado risco inflacionário. Entre a inflação e a recessão, Obama preferiu a segunda, com o desemprego como âncora.
A saída mais ousada seria invocar a décima quarta emenda da Constituição dos Estados Unidos como justificativa para aumentar o teto da dívida por decreto, sem pedir autorização ao Congresso. Obama descartou a opção alegando que seus advogados o haviam desaconselhado. É a demonstração cabal de que não percebeu o momento que está vivendo e não teve a postura de outros presidentes que, diante de conjunturas críticas agudas, tomaram decisões ousadas que levaram à reinterpretação das leis pela própria Suprema Corte daquele país. Também parece que não entendeu que a Presidência da República é algo importante demais para ser um assunto restrito a advogados.
Obama menos ainda parece ter entendido que o jogo partidário mudou com a entrada em cena do movimento “Tea Party”, cujas marcas registradas são a intolerância, o preconceito e a xenofobia. Seus representantes políticos são agressivos, armados e perigosos. Suas expressões de velhos vícios políticos aparecem embaladas sob a roupagem de uma defesa das “tradições americanas”.
O movimento controla uma parcela do Partido Republicano, mas tem demonstrado base social suficiente para desmoralizar iniciativas bipartidárias. Em situações que por lá são classificadas como de “governo dividido” (quando o presidente da República é de um partido, mas o Congresso tem maioria opositora), as soluções surgiam de acordos para se encontrar um meio termo. Com o avanço do “Tea Party”, parece que a brincadeira acabou.
Obama não considerou o “default” como uma possibilidade; o “Tea Party”, sim. O que isso quer dizer? Enquanto os ultraconservadores cogitaram levar o país ao calote, mantiveram a ofensiva e colocaram o presidente nas cordas, golpeando-o sem dó nem piedade. Ao recusar a hipótese como igualmente válida, Obama abriu a guarda. Antecipou sua posição de que qualquer coisa seria melhor que o calote.
Dias depois do acordo, já não se tinha tanta certeza. Descortinou-se um pessimismo absoluto em relação à possibilidade de recuperação da economia e melhoria das contas do setor público. Os EUA estão em dependência estrutural de déficits públicos elevados. No momento em que mais precisa injetar recursos na economia, sofre um dos mais pesados cortes de gastos de sua história.
Por que o calote não era de fato uma alternativa para Obama? A rigor, porque, nos EUA, trata-se de uma heresia em termos de receituário econômico. Mas há uma razão mais concreta. Fosse o calote uma opção, colocaria Obama diante do mesmo dilema: cobrar a conta dos ricos ou dos mais pobres? Numa situação de “default”, o presidente teria que decidir sobre uma diretriz essencial: qual a prioridade de gastos, com menos dinheiro que o necessário para custear todas as suas obrigações? Pagar juros da dívida e gastos de guerra? Ou destinar recursos para programas sociais e para financiar gastos da classe média? Adivinhe qual seria a escolha.
Erro crasso de avaliação é Obama achar que o acordo lhe permite uma reserva de combustível suficiente para se reabastecer nas próximas eleições. É como jogar o carro em ponto morto diante de uma ladeira. Pensa que poderá culpar os ultraconservadores pelos problemas que dobrarão de tamanho, a partir de agora. Sua plataforma de 2008, guardada como viola no saco, seria a mesma da próxima campanha.
Mas nem mesmo os Democratas estão convencidos disso. Metade de seus deputados votou contra o acordo. A outra metade votou a favor para garantir a aprovação. Os parlamentares que não marcaram posição contrária declararam-se publicamente constrangidos por aceitar uma situação que mostra que o governo optou pelos mais ricos e rifou os mais pobres.
Governar para os ricos e esquecer-se dos mais pobres e da classe média era a acusação de Obama contra Bush e trilha sonora de seus empolgados discursos. Agora, tornou-se o veneno que o presidente Democrata bebe em uma taça e oferece em brinde ao povo americano.
Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
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