domingo, 17 de julho de 2011

Dívida e decadência do império

Por Umberto Martins, no sítio Vermelho:

A novela da dívida americana teve um novo e dramático capítulo nesta sexta-feira (15), protagonizado por Barack Obama. Durante entrevista coletiva, a segunda da semana, o presidente dos EUA renovou o apelo ao Congresso para elevar o teto da dívida pública, hoje em US$ 14,3 trilhões, e advertiu que “o tempo está se esgotando”. Se o Parlamento não autorizar a ampliação do endividamento até 2 de agosto, o governo não terá como pagar suas despesas e incorrerá em moratória.

O impasse foi reiterado hoje no Capitólio, onde democratas e republicanos não conseguiram chegar a um acordo. Já se fala num plano B para evitar o calote. Seguindo o caminho da Moody’s, outra agência de classificação de risco, a Standard & Poor's, anunciou a revisão da nota de crédito dos EUA e a possibilidade de rebaixá-la.


Um problema mundial

Na quinta (14), a China manifestou preocupação com a possibilidade de moratória e cobrou do governo estadunidense maior “responsabilidade” na relação com os investidores estrangeiros. O gesto é emblemático das mudanças em curso na economia mundial. O gigante asiático é o maior credor da Casa Branca. Possui mais de 1 trilhão de dólares em títulos do Tesouro dos EUA e tem razões de sobra para ficar apreensivo.

Embora menosprezada por muitos economistas, a dívida estadunidense, pública e privada, vai se revelando um sério problema para a economia mundial. Ela reflete, ao mesmo tempo em que impulsiona, o processo histórico de declínio do poderio econômico relativo dos Estados Unidos.

De credor a devedor

Ao contrário do que muitos imaginam tal declínio não começou com a chamada Grande Recessão, iniciada em dezembro de 2007, nem terá desfecho em curto prazo. É certo que o fenômeno se tornou mais agudo e transparente ao longo dos últimos anos. Mas teve início décadas atrás.

Um marco no processo de declínio foi precisamente a transformação dos EUA de país credor (o maior do mundo) em devedor (líquido), o que ocorreu na segunda metade dos anos 1980. Desde então, a dívida não parou de crescer, de forma que Tio Sam é hoje, de longe, o maior e mais perdulário devedor do planeta.

Pano de fundo

O problema não se resume à dívida governamental, que já está em torno de 100% do PIB. É preciso levar em conta também os débitos privados (de empresas e indivíduos), que são pelo menos três vezes superiores ao do setor público e fomentaram a bolha e a crise imobiliária.

O pano de fundo da decadência, e também da dívida, é o acúmulo de déficits na balança comercial, recorrentes desde o fatídico ano de 1971, quando o ex-presidente Richard Nixon deu um fim ao acordo monetário de Bretton Woods, que estabelecia a convertibilidade do dólar em ouro.

Exportação de capitais

Durante anos o déficit no intercâmbio de mercadorias foi coberto com folga pelos lucros das multinacionais estadunidenses, extraídos em outros países e remetidos às matrizes. Embora a balança comercial registrasse saldos negativos a conta corrente continuava positiva e o país mantinha a posição de credor.

Conforme notou Lênin em suas análises sobre o imperialismo, a exportação de capitais, ao permitir a apropriação de excedentes gerados no exterior, cria as condições para o florescimento do parasitismo – a arte de viver à custa alheia. O déficit comercial é a medida mais precisa do quanto a sociedade norte-americana consome o produto do trabalho alheio além dos próprios meios que produz, é o que confere a todo o processo de reprodução do capital na maior potência capitalista do mundo um caráter parasitário.

Contaminando a conta corrente

Mas isto foi mudando na medida em que crescia o passivo externo decorrente do excesso de importações. Este passivo, que na outra ponta é ativo de empresas e governos estrangeiros, também demanda remuneração. Ao longo dos anos 1980, o rombo comercial se transformou em déficit da conta corrente, refletindo o fato de que os lucros extraídos no exterior já não eram suficientes para cobrir o saldo das importações.

Tio Sam teve de recorrer a um crescente endividamento externo para financiar o consumismo e a decorrente deterioração das transações correntes. Por isto deixou de ser credor (líquido) e, desde então, vem acumulando dívidas.

Desindustrialização

Políticos norte-americanos e apologistas do império não perceberam os riscos embutidos no comportamento da balança comercial, concebida apenas como um artifício contábil, que ano após ano e sem muito alarde foi corrompendo a competitividade da indústria e ampliando o parasitismo da sociedade.

Era como se o país não mais precisasse produzir para sobreviver. Comprando fiado no exterior, Tio Sam fomentou o consumismo enquanto a indústria local perdia terreno para as importações e empresas se deslocaram para outros países. Um lento processo de desindustrialização teve curso, mas foi apresentado como resultado exclusivo do desenvolvimento objetivo das forças produtivas - um sinal de progresso, caminho seguro para a sociedade pós-industrial.

Roda da fortuna

Bem mais que um mero artifício contábil, o déficit na conta de mercadorias denuncia a carência de poupança interna (contrapartida do excesso de consumo) e se revela a principal via de valorização e realização de capitais estrangeiros. Pelo déficit americano girou a roda da fortuna mundial. Primeiro foram Alemanha e Japão os principais beneficiários do desequilíbrio comercial. Depois, a China. Daí se infere o entrelaçamento do déficit com o processo de reprodução do capital em escala mundial.

A forma aparentemente fácil e segura de financiamento da dívida (a transmutação dos superávits obtidos pela China e outros países em títulos públicos e outros ativos dos EUA, incluindo aquisição de empresas) reforçava a aparência de que tudo estava em ordem, a China poderia continuar produzindo, Tio Sam consumindo. Temos, então, uma perfeita simbiose de interesses e - vamos que vamos! – não há razão para se preocupar com déficits e débitos. Esta percepção enviesada da realidade não sobreviveu à crise.

Sem final feliz

A dívida deslocou os EUA da condição de maior exportador de capitais do mundo para a desconfortável posição de importador líquido de capitais, virou um país dependente da injeção maciça de capitais estrangeiros, com uma necessidade de financiamento externo que, antes da crise, oscilava em torno de US$ 1 trilhão de dólares (por ano). Conforme notou o historiador Eric Hobsbawm, é aí que se esconde o segredo da decadência do império, que deixou de ser o ator principal no concorrido jogo das fusões e aquisições, pelo qual corre o processo de concentração e centralização do capital na atualidade.

A novela da dívida promete novos capítulos até 2 de agosto. É provável que governo e parlamentares cheguem a um acordo, mas isto não significará necessariamente um final feliz. O processo de declínio da liderança econômica dos EUA no mundo (e, por decorrência, da decomposição do padrão dólar e da ordem imperialista mundial), do qual a dívida é apenas um reflexo, promete rolar durante muitos anos e dificilmente terá um desfecho pacífico, mesmo porque as coisas, neste nível, não se resolvem no plano da economia. Há que se levar em conta a política e o poder militar, onde a supremacia norte-americana, por hora, é quase absoluta

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