segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

"Lincoln" dá aula de política



No Brasil, país onde a atividade parlamentar tem sido sufocada por um debate de tom moralista, o filme "Lincoln", de Steven Spielberg, equivale a uma aula magna sobre o tema.

Paulo Moreira Leite
Debruçado na luta parlamentar do mais importante presidente dos Estados Unidos para aprovar a emenda constitucional que aboliu a escravidão, Spielberg não tem receio de mostrar a política como ela é – com seus ideais e suas ambições, compromissos sociais e visões diversas, mas também com seu jogo de bastidores, a troca de favores e benefícios que permitiram um avanço que mudou a história americana e abriu novas perspectivas de prosperidade mundialmente.

O filme não idealiza um momento épico com frases de efeito e lições pedantes. Pelo contrário. Ajuda a recordar que os homens travam seu combate político a partir de condições dadas. 

As condições reais da luta política nos EUA daquele período não tinham nada de um convento de freiras carmelitas. Para quem acredita que a política americana tem outra “cultura”, com um maior apego “à ética” e aos “valores morais”, o filme serve como um banho de realidade. 

O choque entre as verdades que o filme exibe e as crenças estabelecidas a respeito da história dos EUA é tão grande que ajuda a explicar porque Steven Spielberg perdeu o Oscar de Melhor Diretor. Sem exagerar na sociologia de botequim, meu palpite é que “Lincoln” exibe verdades inconvenientes demais para receber tamanha consagração.   

 “Lincoln” se passa num momento histórico preciso, quando a derrota militar do Sul escravocrata está definida e é preciso negociar como o país irá sair de uma Guerra Civil que já fez 60.000 mortos. Com um roteiro bem estruturado, o filme mostra qual é o debate daquele momento. 

De um lado, com imenso apoio popular, mas isolado junto à elite americana e dentro de seu próprio governo, Lincoln está convencido de que é preciso aproveitar aquela conjuntura favorável como uma oportunidade única para abolir a escravidão. Em vez de reconstruir os velhos acordos de sempre, que permitiriam a manutenção do cativeiro, coloca a abolição como condição para a paz. Já seus adversários querem o contrário. Garantir a paz em primeiro lugar para, em posição mais confortável, negociar o destino dos escravos – com resultados previsíveis. 

Entre os dois lados do conflito, há um Congresso onde Lincoln tem uma leve maioria, insuficiente para aprovar uma emenda constitucional. O enredo do filme consiste na luta de um presidente politicamente resoluto, socialmente progressista e quase um fanático religioso, que avança a passos largos pelos escombros de um pacto social inviável, mas protegido por homens de força, tradição e muito poder.

Spielberg faz justiça aos operadores políticos que se dedicam a buscar os votos que faltam. Não esconde seu papel decisivo em vários momentos, inclusive numa situação insólita, minutos antes da votação, quando uma pequena manobra conservadora pode colocar tudo a perder. 

Os operadores se mostram incansáveis no trabalho de convencer deputados em fim de mandato, que não conseguiram reeleger-se no último pleito – e, às  vésperas de tomar o rumo de casa, podem mudar de lado se ouvirem bons argumentos, em alguns casos, ou receberem uma boa oferta material, em outros, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Estas conversas e negociações ocupam o centro dramático do filme – e terão um peso decisivo no desfecho dos acontecimentos. Spielberg não foge da discussão, não embeleza nem esconde os fatos. Mostra como eles se passaram. 

Baseado numa obra respeitada pela pesquisa histórica, o filme exibe o presidente em reunião com seus operadores, discutindo técnicas de abordagem dos indecisos. Quando um dos presentes comenta que alguns votos vão sair mais caros, sugerindo que seria recomendável que se fizesse oferta em dinheiro, o presidente reage em silêncio – o filme deixa a cada um o direito de imaginar o que ele queria dizer com isso.

Numa das cenas finais, um veterano das campanhas abolicionistas chega a definir a abolição, explicitamente, como uma das mais belas e mais corruptas decisões do Congresso americano. 

Num país atingido por esforços sucessivos de criminalização da atividade política, Lincoln é um instrumento útil para se refletir como uma mudança desse vulto foi operada num dos regimes de democracia mais ampla daquele período. Antes e depois da abolição, a política norte-americana conviveu com esquemas variados de corrupção. 

A pergunta honesta e difícil que o filme evoca consiste em saber qual a melhor opção: manter o regime do cativeiro ou jogar as regras do jogo para fazer o país avançar? 

Fica claro que, sem o pacote de empregos, benefícios e favores distribuídos por seus operadores – e sem uma postura política irredutível de eliminar o cativeiro – Lincoln teria entrado para a História como um presidente de ótimas intenções e péssimos resultados. 

A luta contra o cativeiro não se resumiu aos bastidores de Washington nem à guerra de parlamentares republicanos e democráticos. Incluiu revoltas, fugas em massa e outros atos de insubordinação conduzidos pelos próprios escravos, que terminaram por colocar o fim do cativeiro na ordem do dia, como se vê em  Django, que se passa na mesma época. Mas a abolição precisava de uma emenda constitucional e esta mudança só poderia ser feita pelos métodos usuais da política. 

Eu acho importante que Spielberg não tenha querido embelezar a história, fingindo que ela aconteceu de forma mais edificante. 

Ao exibir os fatos em sua verdade e feiura, o filme em nada diminui a grandeza de uma mudança decisiva para o conjunto da humanidade. Spielberg mostra que Lincoln estava determinado a aproveitar cada brecha, cada oportunidade, para empurrar a roda da história. Esta é a lição do filme.

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