Foto: Obra do artista paracatuense Flávio Costa
Feliz Natal a quem não planta corvos
nas janelas da alma, nem embebe o coração de cicuta e ousa sair pelas ruas a
transpirar bom-humor.
Feliz Natal a quem cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e coleciona
no espírito as aquarelas do arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias
interiores e não temem as curvas abissais da oração.
Feliz Natal aos que reverenciam o silêncio como matéria-prima do amor e
arrancam das cordas da dor melódicas esperanças. Também aos que se recostam em
leitos de hortênsias e bordam, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras
de ternura.
Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o
perfume da rosa-dos-ventos e levam no peito a saudade do futuro. Também aos que
semeiam indignações, mergulham todas as manhãs nas fontes da verdade e, no
labirinto da vida, identificam a porta que os sentidos não vêem e a razão não
alcança.
Feliz Natal a todos que dançam embalados pelos próprios sonhos e nunca dizem
sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto da vingança e jamais
pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o ódio destrói primeiro a quem
odeia.
Feliz Natal a quem acorda, todas as manhãs, a criança adormecida em si e,
moleque, sai pelas esquinas quebrando convenções que só obrigam a quem carece
de convicções. E aos artífices da alegria que, no calor da dúvida, dão linha à
manivela da fé.
Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas a fim de atirá-los no
lixo do olvido e guardam recatados os seus olhos no recanto da sobriedade. A
quem resguarda-se em câmaras secretas para reaprender a gostar de si e, diante
do espelho, descobre-se belo na face do próximo.
Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à sobeja
dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra erre do verbo
armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.
Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios. Também
aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores e aos
escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a quem
declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável.
Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia que
dormem acobertados pela compaixão. E a todos que contemplam ociosos o entardecer,
observando como o Menino entra na boca da noite montado em seu monociclo solar.
Feliz Natal a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala
os picos em que os abutres chocam ovos. E a todos que destelham os tetos da
ambição e edificam suas casas em torno da cozinha.
Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove uma despudorada liturgia
eucarística, transubstanciando o corpo em copo inundado do vinho embriagador da
perda de si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor
não é eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.
Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à
mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de
cumplicidades.
Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão da vida
as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários de mistério e
conhecem a geometria da quadratura do círculo.
Feliz Natal a quem se embebeda de chocolate na esbórnia pascal da lucidez
crítica e não receia pronunciar palavras onde a mentira costura bocas e enjaula
consciências. E a todos que, com o rosto lavado das maquiagens de Narciso,
dobram os joelhos à dignidade dos carvoeiros.
Feliz Natal a todos que sabem voar sem exibir as asas e abrem caminhos com os
próprios passos, inebriados pelos ecos de profundas nostalgias. E aos que
decifram enigmas sem revelar inconfidências e, nus, abraçam epifanias sob
cachoeiras de magnólias.
Feliz Natal aos que saboreiam alvíssaras nos bosques onde vicejam anjos
barrocos e nadam suas gorduras deixando os cabelos brancos flutuarem sobre a
saciedade de anos bem vividos. E a todos que dão ouvidos à sinfonia cósmica e,
nos salões da Via Láctea, bailam com os astros ao ritmo de siderais incertezas.
Feliz Natal também aos infelizes, aos tíbios e aos pusilânimes, aos que deixam
a vida escorrer pelo ralo da mesquinhez e, no calor de seus apegos, vêem seus
dias evaporar como o orvalho aquecido pelo alvorecer do verão. Queira Deus que
renasçam com o Menino que se aconchega em corações desenhados na forma de
presépios.
• Frei Betto é escritor, autor de “A
noite em que Jesus nasceu” (Vozes), entre outros livros.
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