Roberto Gurgel, procurador-geral da República, abriu sua acusação com citação de Raymundo Faoro, autor do clássico Os Donos do Poder, que denuncia a formação do “patrimonialismo” brasileiro, mal que perduraria até hoje. Gurgel comete o erro básico daqueles que se deixam levar pela vaidade intelectual, que é talvez a mais poderosa e corrosiva das vaidades: o brilho fácil. O procurador inclusive abre um parênteses em sua fala para dizer que teve o privilégio de conhecer pessoalmente o grande jurista, lembrando que ele costumava corrigir a pronúncia de seu nome, que se diz Faôro, e não Fáoro.
A citação de Faoro serve como tapete vermelho para Gurgel acusar os réus de confundirem “o público e o privado”, vício antigo da elite política nacional.
Entretanto, como todo clássico, e como toda teoria complexa, as teses de Faoro podem ser interpretadas através de um leque quase infinito de abordagens. De qualquer forma, é uma mais dessas ironias supremas que uma das mais contundentes denúncias contra o patrimonialismo da política nacional seja usada para atacar o governo que representou, na prática e na teoria, o grande e definititivo golpe contra o patrimonialismo.
Segundo Max Weber, patrimonialismo é administrar o Estado como bem de família. Para que isso seja possível, porém, é preciso que haja algumas condições: falta de transparência, domínio da mídia e conjugação entre patrimônio financeiro e político. O povo tem dificuldade para entender que o dono das terras, dos jornais e do comércio de sua cidade não é dono também das leis.
Com Lula, inaugura-se, em larga escala, a transparência. Cria-se o Portal da Transparência. Gastos do governo e seus membros, mesmo os mais ínfimos, são publicados na internet. A mídia, inclusive, irá abusar dessa novidade, conforme se viu com o escândalo criado a partir de uma tapioca comprada pelo então ministro do Esporte, Orlando Silva, numa lanchonete de Brasília.
E os donos do poder não serão os mais ricos. Lula, um homem oriundo dos estratos mais baixos da sociedade, ascendia ao poder máximo da República. Com ele (e Dilma), ascendia um grupo de origem humilde, ou vindos de estratos médios. Um enorme contingente de negros, mulheres, sindicalistas, ganhava oportunidades no alto escalão da elite política. O tucanato, não esqueçamos, representa antes de tudo uma elite paulista branca, acadêmica, com ideias convergentes àquelas dos barões da mídia.
Ora, é justamente a ascendência desse novo grupo que provoca um choque naquele que seria o mais poderoso “estamento” de uma república moderna, na concepção de Weber, autor sempre citado por Faoro. Esse “estamento” é a elite do serviço público, representada aqui por Roberto Gurgel.
Diz Faoro, à página 830, de Os Donos do Poder:
(…) a elite burocrática [nos países em formação], a intelligentsia que absorve as técnicas do capitalismo industrial, preocupada com a eficiência da modernização econômica e social, tenta se autonomizar, desdenhando dos políticos, para ela simples agitadores, ignorantes, incapazes e corruptos.
Gurgel, portanto, ao citar Faoro, abriu as portas de um dique que poderia inundar a sua delicada plantação de certezas e preconceitos. Sua acusação, repleta de adjetivos (“atrevido”, “escandaloso”, “risível”, “maior caso da história”), revela o seu próprio patrimonialismo: ele, Gurgel, confunde o poder que a sociedade lhe confere com algum tipo de superioridade moral.
É evidente que um político convive com determinados dilemas morais próprios de sua função, dos quais funcionários concursados estão livres. Um procurador não precisa arrecadar dinheiro pra campanha política, por exemplo. Um político tem de fazê-lo. Faz parte da democracia capitalista em que vivemos, e apesar dos vícios implicados no sistema, a doação das empresas aos políticos e partidos tem um significado democrático. Uma indústria de tecnologia vai doar para um político que investirá em tecnologia, assim como um fazendeiro vai doar a outro que investirá em agricultura. Ao cabo, são as forças sociais que estão por trás de tudo. Não esqueçamos que uma das razões que levaram Lula a ganhar as eleições, tanto em 2002 como em 2006 é que, apesar de todo o preconceito ideológico, um número substancial de empresários doou dinheiro à Lula porque não aguentava mais a política recessiva e neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Desde então, o PT vem recebendo mais doações privadas do que o PSDB. O capital brasileiro enxergou o que seus primos europeus e americanos enxergaram há duzentos anos: o desenvolvimento econômico se beneficia do desenvolvimento social, e para que este último aconteça é preciso haver distribuição de renda.
Aí entra também o erro idiota dos partidos de oposição que até hoje acreditam no sucesso do bombardeio moralista da mídia. Tanto o empresário como o trabalhador não dão prioridade a questões éticas ou morais na hora de apoiarem um candidato, não porque achem essas questões menores, mas porque não são ingênuos de acreditarem que a oposição é mais honesta.
O PT ganhou eleição não porque era mais “honesto”, mas porque encarnava ideais de luta contra a pobreza e desenvolvimento sócio-econômico que seus adversários jamais abraçaram com a força necessária.
O julgamento do mensalão, portanto, não vai afetar as eleições deste ano, como tanto deseja a mídia e a oposição, porque o eleitor não é bobo.
Quem representa o “estamento” weberiano (e de Faoro), esse grupo enraizado na elite do poder, contaminado até a medula pelo patrimonialismo, é Roberto Gurgel e a mídia corporativa. Os políticos precisam atravessar, a cada quatro anos, um novo Mar Vermelho, um desafio monstruoso que exige um diálogo cada vez mais transparente com a população: o sufrágio. Já a elite do Ministério Público e do Judiciário em geral, assim como os barões midiáticos, não precisarão jamais se submeter ao contato, sempre algo sujo, com o povo, empresários, sindicatos e movimentos sociais. Um político tem que obter votos de todos, tem de ganhar as eleições, e para isso precisa falar com todo mundo, ouvir todo mundo, aliar-se com antigos adversários, brigar com aliados. Vê-se enfim diariamente perante inúmeros dilemas ideológicos, morais, políticos, que um procurador, um juiz, jamais enfrentará.
Neste julgamento, assim como em tantas outras ocasiões, nota-se uma deferência “patrimonialista” da mídia e setores da opinião pública, ao procurador. Ele figura como um campeão olímpico imune às críticas. Ora, ele é um ser humano, um pecador, sujeito a falhas, tentações, preconceitos e confusões, como qualquer um!
O teor rancoroso e ideológico da acusação de Gurgel, com seus adjetivos melosos e exagerados, revela a insatisfação da elite patrimonialista, aquela que sempre foi dona (e ainda é, em boa parte) dos espaços mais elevados do serviço público, com a invasão plebéia ao Palácio do Planalto. Há uma renovação na base, mas ainda vai demorar alguns anos para que os altos escalões reflitam a nova realidade sócio-econômica do país.
Com que outra razão insiste-se numa acusação à qual faltam provas? O mensalão de FHC, para compra de sua reeleição, continha a confissão de dois parlamentares, que disseram ter recebido dinheiro para votar em favor do governo tucano. E houve, por fim, o crime que justificara o peculato, a aprovação da reeleição. Que provas há do mensalão petista?
Ary Nunes, um leitor do Nassif, sintetizou de forma genial:
A base de argumentação do Gurgel me lembra o Chaves tentando provar a existência do homem invisível: “Não está vendo que não está vendo ele?”. Ou seja, para o Gurgel (e para o Chaves) a prova da existência do homem invisível está no fato de que ninguém pode vê-lo. O personagem do Bolaños ao menos é engraçado.
De fato, é ridículo que Gurgel use como “prova” da participação de Dirceu como “líder da quadrilha” justamente a falta de provas! Como não há áudio, depósito, documento, nada que ligue Dirceu ao mensalão, só resta ao acusador apelar para a estratégia esdrúxula de dizer que esta ausência é justamente “a prova” de que o ex-ministro era o líder. Não adianta enfeitar com citações de juristas, leis internacionais, o escambal.
Na falta de provas, Gurgel apela a testemunhas, um tremendo “disse-me-disse”: Jefferson disse que Valério disse que Delúbio disse que Dirceu dera aval e sabia de tudo. Mesmo os depoimentos mais, digamos, inteligíveis, sobre um suposto “aval” de Dirceu à tomada de empréstimos, também não provam o mensalão, que seria a compra de apoio político pelo governo.
Gurgel, confessamente perdido no mar de suas teses, sem prova à vista, vai atrás do que seria sua última bóia de salvação: relaciona depósitos a votações importantes na casa e aí vemos mais uma escandalosa manipulação dos fatos. Em primeiro lugar, o procurador convenientemente omite o fato de que se houve depósitos e houve votações alguns dias depois, não houve aumento do apoio ao governo. O que seria, portanto, apenas uma tese, perde força quando confrontada com a análise das votações. Além disso, não esqueçamos que o trabalho do Congresso é votar. Há votações diárias, portanto o procurador sempre vai achar votações importantes em datas “próximas” de qualquer depósito recebido por um parlamentar.
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